Qual a importância do prontuário na minha clínica odontológica?
9/26/20254 min read
A prática odontológica, embora pautada pela excelência e cuidado com o paciente, não está imune a desafios jurídicos. Um recente acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo acende um importante alerta para dentistas e clínicas: a documentação completa e rigorosa não é apenas uma formalidade, mas sim a principal linha de defesa em casos de alegação de erro profissional. Este artigo destrincha as nuances desse julgamento, oferecendo insights valiosos para blindar sua prática.
O caso em análise: Um tratamento ortodôntico com desfecho desfavorável
O cerne do litígio envolvia uma paciente que buscou serviços odontológicos para suprir a falta de dois dentes inferiores, ocasião em que lhe foi informado que não seria possível inserir ponte sem antes iniciar tratamento com aparelho dentário, com a finalidade de se criar um espaço para subir a arcada dentária. Contudo, em razão do tratamento a paciente perdeu um dente superior, o que foi reparado mediante implante de dois dentes artificiais ancorados ao canino, causando grande desconforto e sensibilidade e, após remoção do aparelho, três anos depois de sua implantação, a maioria dos seus dentes ficou mole, apresentando grande movimentação, com grandes espaços entre si, além de estarem tortos.
A responsabilidade do dentista: Obrigação de resultado e inversão do ônus da prova
A decisão judicial reforça a compreensão de que, em determinados tratamentos odontológicos, como a ortodontia, há uma "obrigação de resultado". Isso significa que o profissional se compromete a alcançar um desfecho específico.
Conforme o acórdão, mesmo na obrigação de resultado, a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais (como dentistas) é apurada mediante a verificação de culpa (Art. 14, § 4º, Lei n. 8.078/90 - Código de Defesa do Consumidor). No entanto, um ponto crucial é a inversão do ônus da prova (Arts. 12, § 3º, e 14, § 3º, do CDC). Isso quer dizer que, em disputas como esta, não é o paciente que precisa provar a culpa do profissional, mas sim o profissional que deve comprovar que agiu de acordo com as boas práticas e sem falhas.
O papel decisivo do prontuário: Sua defesa inegociável
O grande diferencial e, paradoxalmente, a falha central no caso analisado, residiu na ausência de um prontuário completo. O perito judicial, mesmo não sendo ortodontista especializado (e sua qualificação foi validada pelo tribunal), embasou suas conclusões em literatura específica da área e na falta de documentação adequada.
Segundo o perito, "não houve anotações suficientes para se enxergar indiretamente o tratamento por meio do prontuário. P. ex. não existem anotações das espessuras dos fios ortodônticos, do material deles. Outro ponto: o requerido não anotara quais elementos se ligavam pelos elásticos”
Mais grave ainda foi a constatação sobre a avaliação periodontal: "não houve qualquer prova de que a avaliação periodontal criteriosa teria sido feita. Tampouco houvera quaisquer anotações sobre os índices de sangramento, índices de sondagem”
O tribunal enfatizou que a prestadora de serviço não pode se beneficiar das omissões no prontuário, que seria o meio hábil para provar a observância das boas práticas odontológicas. A má condução do tratamento, aliada à falta de documentação, configurou a má-prática e o não cumprimento da finalidade do contrato.
Implicações para o profissional e a clínica:
Dano moral e material: A condenação incluiu R$ 6.000,00 por dano moral (pelo sofrimento resultante do tratamento frustrado e sua longa duração) e R$ 3.120,00 por dano material.
Responsabilidade solidária: A clínica foi responsabilizada solidariamente pelo defeito na prestação de serviços pelo profissional a ela vinculado, reforçando a necessidade de um controle rigoroso sobre a conduta de toda a equipe.
Reputação: Além dos custos financeiros, uma condenação por erro profissional tem um impacto significativo na reputação, podendo afastar futuros pacientes e prejudicar a consolidação da clínica.
Como blindar sua prática: Ações estratégicas para o profissional da saúde
Este acórdão é um chamado à ação para todos os profissionais da saúde, especialmente os dentistas. Para evitar desfechos semelhantes, considere:
Prontuário detalhado e completo: Registre cada etapa do tratamento, materiais utilizados, intercorrências, orientações ao paciente, exames complementares, e, crucialmente, avaliações prévias (como a periodontal). Se não está no prontuário, judicialmente, não existe.
Termos de consentimento livre e esclarecido (TCLE): Certifique-se de que o paciente compreenda os riscos, benefícios e alternativas do tratamento, registrando seu consentimento de forma inequívoca.
Educação Continuada: Mantenha-se atualizado com as melhores práticas da sua especialidade, garantindo que os procedimentos adotados estejam em conformidade com os padrões da literatura científica.
Assessoria jurídica especializada: Contar com o suporte de um advogado especializado em direito médico permite uma revisão proativa de protocolos, contratos e documentação, minimizando riscos e fortalecendo sua defesa em caso de litígios.
Conclusão:
A decisão do TJ/SP é um lembrete contundente de que, no cenário jurídico atual, a diligência na documentação é tão fundamental quanto a excelência técnica. Para profissionais da saúde, o prontuário completo é a peça-chave para garantir a segurança jurídica da sua prática e a tranquilidade para focar no que realmente importa: a saúde e o bem-estar de seus pacientes.